O documentário Incompatível com a vida, que foi qualificado para o Oscar e é hoje multi premiado, começou com a pior notícia que eu poderia receber: Meu filho desejado não sobreviveria fora de minha barriga.
- Eliza Capai
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No Brasil, a interrupção legal da gestação é permitida nos casos de violência sexual, risco para a vida da pessoa gestante e anencefalia do feto. Em nenhum dos três permissivos há limite de tempo gestacional, necessidade de boletim de ocorrência, autorização judicial ou qualquer outra limitação para a realização do aborto.
Em caso de gravidez incompatível com a vida com diagnóstico diverso da anencefalia, a pessoa gestante pode optar por buscar judicialmente um alvará para interrupção legal, pois, assim como na gestação de feto anencéfalo, não há chance de sobrevida fora do útero. Entenda melhor cada um dos casos:
O Código Penal, a legislação federal e normas técnicas do Ministério da Saúde preveem que a vítima que busca os serviços de saúde afirmando ter sofrido violência tem direito à interrupção legal da gestação. Pela lei, em caso de violência sexual, não é exigido Boletim de Ocorrência ou qualquer outro documento para acessar o direito à interrupção legal da gravidez, a não ser um termo de consentimento da vítima, que possui presunção de veracidade. A equipe médica não deve questionar a decisão da pessoa gestante em caso de escolha pela interrupção, nem a submeter a exames desnecessários, como escuta do batimento cardíaco.
A equipe médica deve orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não pode negar a ela o direito à interrupção, ou comunicar o caso às autoridades sem sua autorização expressa. Não se pode confundir a notificação compulsória ao sistema de saúde e de justiça (anônima e obrigatória) com a comunicação do crime acompanhada da identificação da vítima (condicionada ao consentimento).
Por se tratar de um tema tabu, muitas pessoas sequer entendem que sua gravidez foi fruto de uma violência sexual. Em alguns casos, devido ao choque traumático, ou a situações crônicas de violência, a vítima pode se encontrar confusa até para informar a data exata da violência. Cabe à equipe médica avaliar o tempo gestacional através da data da última menstruação e do exame ultrassonográfico e, se for da vontade da vítima, realizar a interrupção legal com a maior agilidade possível.
O procedimento deve ser realizado em local onde seja resguardada a privacidade da vítima – que pode ser inclusive a sua residência ou outro local de preferência, caso seja possível o aborto por telessaúde com uso de medicamentos. Caso seja realizado na unidade de saúde, os mesmos cuidados de privacidade e acolhimento devem ser seguidos. A vítima tem o direito de ser acompanhada de uma pessoa de sua escolha. A equipe de saúde não deve temer possíveis consequências jurídicas, pois caso se revele posteriormente que a gravidez não foi resultado de violência sexual, somente a pessoa responsável pela declaração inverídica responderá criminalmente.
Na primeira consulta de pré-natal, a equipe médica deve verificar se a pessoa gestante tem alguma doença crônica que pode piorar durante a gravidez e justificar a interrupção legal, tais como (mas não apenas):
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF nº 54, declarou ser constitucional a interrupção da gravidez nos casos de gestação de feto anencéfalo. A Resolução CFM nº 1.989/12 determina que o médico deve prestar à pessoa gestante todos os esclarecimentos que lhe sejam solicitados, garantindo a ela o direito de decidir livremente sobre o caminho a ser escolhido, sem impor sua autoridade para induzi-la a tomar qualquer decisão.
Em situação análoga à de anencefalia, diante de qualquer malformação fetal que impossibilite a vida fora do útero, é possível conseguir autorização judicial para a interrupção da gravidez. A maior parte dos casos são descobertos após a 20ª semana de gestação, ao realizar o ultrassom morfológico. Veja aqui o passo a passo para solicitar a interrupção legal da gestação, se assim desejar.
Já existem precedentes judiciais do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e de Tribunais de Justiça equiparando outras malformações incompatíveis com a vida à anencefalia, como a Síndrome de Body Stalk e a Síndrome de Edwards.
Caso queira entender melhor a situação do aborto no Brasil, recomendamos as páginas: Aborto no Brasil e Mapa Aborto Legal
Se você está sendo ou foi vítima de qualquer tipo de assédio por parte da equipe médica, ou de algum dos grupos que atuam ilegalmente no Brasil coagindo pessoas a não interromper a gravidez, poderá buscar medidas legais e responsabilização por essas condutas. Para isso, é fundamental registrar sua experiência, incluindo mensagens, áudios, ligações ou qualquer tentativa de constrangimento, seja pessoalmente ou à distância. Caso esse assédio se enquadre como violência psicológica*, ou mesmo ameaça, há a possibilidade de registrar Boletim de Ocorrência. Nos casos de constrangimento praticado pela equipe médica, é recomendável registrar a ocorrência na Ouvidoria do hospital e solicitar número do protocolo e prontuário. Saiba também que o prontuário é direito da paciente e você pode solicitar este documento ao hospital a qualquer tempo.
Você também pode encaminhar um relato para a Anis – Instituto de Bioética, que reúne histórias e evidências de obstáculos de acesso a direitos para promover estratégias de proteção e reparação.
* Conforme o art. 147- B, caracteriza crime de violência psicológica contra a mulher “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”.
No Brasil, estima-se em 500 mil o número de abortos realizados por ano, sendo que menos de 1% deles é feito de forma legal.
O procedimento, que é simples e seguro se realizado conforme os métodos indicados pela Organização Mundial da Saúde, se torna de risco se realizado indevidamente na clandestinidade.
Quando a pessoa interrompe a gestação de maneira legal no serviço de saúde ou com acesso às informações e métodos corretos, tem a chance de receber, também, orientação sobre métodos contraceptivos e planejamento familiar, evitando novos abortos no futuro.
(Abortion Worldwide 2017 – Instituto Guttmacher e Universidade de Columbia)
(Pesquisa Aborto e raça no Brasil, de 2016 a 2021 – Instituto Anis)